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Calíope Corcovia
Universidade Federal de São Carlos
Palavras-chave: Sexualidade. Educação sexual. Sexualidade na escola. Diversidade
sexual. Diversidade de gênero. Diversidade na escola. Ambiente escolar.
Introdução
As falhas que se identificam na forma como a sexualidade é tratada no ambiente
escolar começam no conceito mal formado que se tem sobre o próprio termo
“sexualidade” e os assuntos que ele engloba. Dessa forma o presente artigo se
coloca a fim de reformar essa perspectiva e então enumerar algumas medidas
indispensáveis à abordagem de cada um destes assuntos. Sublinha-se aqui a
frequente exclusão do assunto ou superficialidade nos estudos referentes a
orientação sexual e identidade de gênero, além da carência de uma visão mais
crítica, tolerante e imparcial a ser dedicada ao tema. Este artigo é, portanto,
fruto de observações críticas da realidade escolar e social vivenciadas por mim
e recipiente de justificativas teoricamente embasadas para a necessidade de
alteração neste atual modelo de (des)organização da abordagem da sexualidade na
educação, para que crianças e jovens das escolas possam levá-lo para a casa.
“Sexualidade”, o termo fantasma
Não apenas no sentido metafórico de “assombrar” educadores por todo o
Brasil, mas também na conotação de algo “invisível”, ou “impossível de enxergar”
mesmo que presente, assim tem sido a existência da palavra “sexualidade” no
ambiente escolar. Mesmo em escolas que têm um período ou atividades dedicados à
“educação sexual”, propondo-se a discutir a sexualidade, educadores, famílias e
alunxs¹ são incapazes de dar uma definição coerente à palavra “sexualidade”.
Quando se consegue alcançar a coerência, entretanto, as práticas desenvolvidas
em sala de aula ou na escola não satisfazem a definição – isto é, aborda-se a
sexualidade consciente de que a abordagem é falha e que não abrange todos os
assuntos que deveria.
A primeira falha que precisa ser urgentemente corrigida é a
associação da “sexualidade” ao “sexo”. Sexo é o ato ou prática sexual,
discuti-lo – sim – é abordar temáticas como “fetiches”, “fantasias sexuais”,
“produtos de sex shop”; o que nenhum projeto
educacional se propôs a discutir. Xs educadores e familiares devem estar
cientes de que não haverá necessidade de se tratar destes assuntos em nenhuma
aula ou atividade sobre “sexualidade”. O desafio inicial, portanto, está em
deixar claro que os temas a serem abordados, o que se propõe neste artigo
como relevante de ser discutido em ambiente escolar, giram em torno de
“aparelho reprodutor masculino/feminino”, “gestação e métodos contraceptivos”,
“doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e prevenção”, além dos subtemas
inseridos em “diversidade e liberdade sexual”.
Diversidade sexual, os desafios de sua
abordagem
Antes de qualquer coisa deve-se ter em mente que "É particularmente
problemática [...] a ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva
que se limita a proclamar a existência da diversidade possa
servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política
da identidade e da diferença." Silva (2000), p.73. O chamado à questão da
problematização, através das pedagogias, da identidade e da diferença é de
extrema importância. Pois a carência de contextos onde se possa realizar
discussões, críticas e, assim, obter uma visão politizada da diversidade é o
que alimenta casos em que se encontra o posicionamento do “respeito, mas não
aceito”. Quando se trata do incomum, do desconhecido e ainda mais quando é um
assunto permeado de tabu – a sexualidade, muito se observa o pensamento de que
abster-se da discussão relacionada é sinônimo de tratar com respeito; e de que
reclamar ou mostrar-se incomodadx diante da manifestação de uma dessas
expressões incomuns, ou seja, não aceitá-la não seja desrespeitoso.
Isso tudo consequente da celebração da identidade e da diferença em
contraposição com sua problematização.
Então a abordagem da sexualidade deve não apenas cobrir os assuntos que hoje
considera (de um viés biológico: a reprodução, as DSTs etc.), como também
abranger questões de gênero e orientação, expor a diversidade que existe e
promover discussões acerca de sua existência. O espaço de discussão da
sexualidade na escola não deve ser apenas informativo, mas deve fomentar também
o desenvolvimento crítico do pensamento, deve levar x alunx a refletir sobre a
relação que a identidade e a diferença estabelecem com o mundo externo, com a
sociedade.
A sociedade, por sua vez, hospeda um
sem-número de variáveis no âmbito da sexualidade. Infelizmente isso não
significa que todas as vertentes dessa diversidade sejam aceitas pelo coletivo.
A negação de expressões “fora do comum” é um fato social, como definido por
Durkheim, e ela impede uma abordagem ideal dos assuntos relacionados à
sexualidade em sala de aula. Pois quando se concebe que a heterossexualidade –
por exemplo – é o normatizado², se impõe o comportamento heterossexual de forma
coercitiva, não deixando ao indivíduo opções de agir fora daquele modo
normativo. Se a educação não pode, portanto, abordar a diversidade e
interpretá-la como aceitável,
“[...]
pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e
nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios,
sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois
não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação.” Durkheim (1972),
p.47
E dessa forma temos uma educação que é imparcial e não só priva o indivíduo de
conhecer e explorar suas diversas preferências, como também o induz à
intolerância diante das diversidades que encontrará em suas vivências sociais.
E este é o segundo desafio da abordagem da sexualidade na escola: ir contra a
convenção social que coloca a diversidade como “errada” e construir socialmente
a ideia de aceitação das várias expressões da sexualidade.
O grande impasse em tal abordagem está no que Foucault coloca como “três tipos
de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade
complexa que não cessa de se modificar.”, que são interdições do discurso e nos
privam de falar livremente sobre sexualidade. São elas: o tabu do
objeto – que determina o quê pode ou não pode ser
abordado; o ritual da circunstância – que limita os lugares em
que os assuntos podem ou não vir à tona; e o direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito que fala – que impedem ou permitem este ou aquele sujeito de
falar sobre qualquer coisa. Assim, temos hoje uma visão muito predominante de
que o sexo é um assunto que não deve ser abordado, que a
escola não é lugar adequado para se falar de sexo e que crianças não
devem conhecer nada sobre o tema. E é isso que constrói o tabu sobre a
abordagem da sexualidade nas escolas, combinado com o primeiro desafio de
diferenciar sexo e sexualidade. Foucault não só é coerente, como atual, pois o
que pronunciava em 1970 acerca das interdições combinadas a reger nosso
discurso, ainda pode ser observado.
“Notaria
apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os
buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política:
como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a
sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas
exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes.” Foucault
(1970), p.9
Os desafios citados são dois grandes empecilhos a uma abordagem ideal da
sexualidade e dos assuntos convenientes em sala de aula ou ambiente escolar, e
servem de base para justificar os discursos que podem ser observados atualmente
em aulas e atividades escolares ligadas à sexualidade. Especialmente nas séries
iniciais, predomina entre educadores a visão da criança assexuada e inocente, a
insegurança quanto à reação das famílias ao trazer tal assunto à discussão e a
dificuldade em entender a sexualidade como mais do que o ato sexual. Decorrente
disso, até mesmo quando xs alunxs já estão na puberdade, xs educadores
permitem-se apenas falar sobre a biologia humana, diferenciando os aparelhos
reprodutores, sobre proteção contra DSTs, métodos contraceptivos e sentem um
grande despreparo para tratar de identidades de gênero e orientações sexuais.
Em suma, têm-se a grande contradição de que precisamos falar de sexualidade nas
escolas, mas só nos sentimos preparados para falar dos assuntos alusivos a sexo
(o que é, como é, porque acontece, doenças que pode trazer etc.). Um estudo
realizado em escolas do Rio Grande do Sul comprova isso tudo. Na publicação, xs
autores colocam, “A discussão em torno da inclusão ou não da educação sexual
tanto no Ensino Fundamental como na Educação Infantil tem produzido polêmicas,
pois muitos consideram que essa discussão estimularia precocemente a
sexualidade das crianças [...]” Ribeiro et al. (2004) p.122.
Proposta de uma abordagem ideal
As questões até então levantadas na abordagem da sexualidade e as críticas
realizadas são provenientes de um olhar característico das ciências sociais.
Enquanto cientista social, e observando um pedaço isolado da realidade –
composta por inúmeros elementos diversificados, busco remontar o passado como
método para explicar o presente. E quando ocorre essa análise, faço uso do
método sociológico colocado por Weber, usando da construção de tipos “vazios
frente à realidade concreta do histórico” e que muito se afastam da mesma; mas
que acabam proporcionando uma análise racional para a realidade. A ideia de
“tipo ideal” segundo Weber se explica,
“Ao
elaborar o tipo ideal, parte-se da escolha, numa realidade infinita, de alguns
elementos do objeto a ser interpretado que são considerados pelo investigador
os mais relevantes para a explicação. Esse processo de seleção acentua –
necessariamente – certos traços e deixa de lado outros, o que confere
unilateralidade ao modelo puro. Os elementos causais são relacionados pelo
cientista de modo racional, embora não haja dúvida sobre a influência, de fato,
de incontáveis fatores irracionais no desenvolvimento do fenômeno real. No
relativo à ênfase na racionalidade, o tipo ideal só existe como utopia e não é,
nem pretende ser, um reflexo da realidade complexa, muito menos um modelo do
que ela deveria ser.” Quintaneiro e Barbosa (1995), p.112
Por isso explico minha perspectiva diante da abordagem da sexualidade na escola
e construo seu “tipo ideal” como uma abordagem crítica, tolerante e imparcial.
Seu caráter crítico diz respeito à presença de uma visão politizada ao abordar
a sexualidade, dando axs alunxs situações e impasses reais das questões de
gênero e orientação sexual que existem na sociedade. Exemplos de questões que
tal abordagem coloca em sala de aula seriam: o quê é feminino x o quê é
masculino, o quê define “mulher”, como o machismo
fundamenta a homofobia, o quê se entende por homofobia etc.
Da tolerância entende-se a mudança da celebração da
diversidade para a aceitação da mesma, como supracitado no
momento em que se menciona Silva. Uma abordagem que traz discussão à sala de
aula e dá ax alunx conteúdo filosófico para repensar as questões de gênero e
orientação sexual nas suas vivências, consequentemente leva à tolerância. Não
somente o respeito como hoje é superficialmente instaurado deve ser promovido,
mas a aceitação da diversidade. Não basta estar ciente de sua existência e
compreendê-la em seu funcionamento, é preciso preparar os indivíduos para a
convivência pacífica com a diversidade, inibindo suas tendências de se apoiar
em suas paixões (religião, por exemplo) para julgar x outrx como certx/erradx,
dignx/indignx, capaz/incapaz etc. E assim chegamos ao terceiro caráter do tipo ideal
da abordagem da sexualidade: seu caráter imparcial. É justamente ele que
possibilitará a tolerância, pois é ele que prega o desapego a paixões. Ensinar
a todxs que cada um tem características e formação moral que independe de
sua sexualidade é essencial ao abordar o tema na escola. A diversidade, afinal,
se dá exatamente da ampla existência de variáveis, que não se relacionam
diretamente ou tem condições de influenciarem umas às outras. Mostrando e
elucidando que, assim como a orientação sexual (homo, bi ou hétero, por
exemplo) não interfere na identidade de gênero (cis, não-binária ou trans, por
exemplo), nenhum fator ligado à sexualidade do indivíduo
interfere em seu posicionamento político, seu comportamento moral, ético,
filosófico, intelectual.
Algumas considerações
A reforma da abordagem da sexualidade na escola, para que esta se aproxime mais
do “tipo ideal” que defendo, deve começar com medidas que esclareçam quais
assuntos englobam a sexualidade: como ela trata de sexo da sua perspectiva
biológico-científica e de diversidade sexual da sua perspectiva
social-filosófica. A seguir, é preciso que a diversidade seja finalmente incluída,
não meramente “presente” na realidade dxs alunos; expandindo a abordagem da
mesma para além do conhecimento de “como funciona” ou “como se manifesta”,
mostrando também como é recebida pelos preconceitos e frisando seu caráter
independente de diretrizes morais, éticas, por exemplo.
Ponto-chave do presente trabalho é trazer à superfície do debate a inclusão dos
assuntos que permeiam orientação sexual* e identidade
de gênero às práticas pedagógicas que tenham a pretensão de se
aproximar do “tipo ideal” de abordagem aqui defendido. Para tal, entretanto, é
preciso que esteja clara a dificuldade a ser enfrentada na quebra das
interdições do discurso, ao se defender uma abordagem que bate de frente com
limitações social e culturalmente impostas de se tratar da sexualidade, de onde
e quem pode discuti-la.
Desta crítica que compara a abordagem atual com um “tipo ideal” por mim
elaborado, deve-se perceber a necessidade de alterações no modelo atual de
educação sexual capazes de melhorar os resultados obtidos; e não capazes de
alcançar uma abordagem no formato do “tipo ideal” – mesmo por que do seu
caráter utópico. Deve-se considerar este trabalho como proposta de valores a se
ter em mente ao elaborar um projeto educacional ou plano de ensino voltado à
abordagem da sexualidade. As observações aqui registradas não têm solidez ou
propriedade suficientes para compor um planejamento de ensino, apenas inspiram
um caminho a ser seguido pela abordagem que pretende se assemelhar da ideal. E
a educação sexual que se embasar em tais instruções obterá seu êxito não ao
atingir o “tipo ideal”, mas ao demonstrar que foi capaz de transportar a
abordagem coerente da sexualidade da escola para a casa dxs alunxs.
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TORRES, M. A. Direitos humanos
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lógicas heterossexistas Santa Catarina: Fazendo gênero 9 – diásporas,
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